Uma quadrilha agia em seis estados brasileiros, vendendo vagas de
Medicina, a carreira mais concorrida do país. Não precisava nem estudar:
era na base do pagou, passou. A reportagem é de Giuliana Girardi e
Walter Nunes.
A oferta era clara.
Homem: Tudo primeiro lugar é nosso. A gente arrebenta tudo que é prova.
De um esquema ilegal.
Mulher: As faculdades que a gente coloca é porque a gente sabe que o aluno não vai ser pego.
E quem topava pagava caro.
“A vaga numa faculdade de medicina custava entre R$ 60 mil e R$ 90 mil”, afirma o delegado da Polícia Federal Alexandre Braga,
“Você vê uma pessoa que não merece passando na sua frente, é horrível isso”, diz um estudante de medicina.
O jovem não quis mostrar o rosto por medo: foi convidado a participar
de um esquema fraudulento, mas diz que recusou. No ano passado, ele
prestou vestibular em seis faculdades em busca de um sonho: estudar
medicina, a carreira mais concorrida do país.
Para quem se prepara a sério para as provas, a concorrência dos fraudadores é desleal.
“Você vai prestar um vestibular que é 50 candidatos por vaga, na
verdade é 100 candidatos por vaga. Porque metade das vagas são
vendidas”, conta o estudante. “É comum. Todo mundo sabe. O ponto
eletrônico é o que mais oferece.”
Aparelhos eletrônicos escondidos, estudantes despreparados e dezenas de
milhares de reais comprando o que não deveria estar à venda. Vale tudo
para entrar em algumas faculdades de Medicina no Brasil.
Uma dessas quadrilhas, descoberta no interior de São Paulo, vendia
vagas em seis estados: São Paulo, Mato Grosso do Sul, Piauí, Maranhão,
Goiás e Rio de Janeiro. Por telefone, eles negociavam com pais e
candidatos.
Mulher: A gente faz isso há 15 anos já.
O Fantástico mostra essas conversas com exclusividade. Em um telefonema, uma mulher apresenta o golpe para um pai..
Mulher: O senhor tem uma filha, né?
Pai: Exatamente.
Mulher: Isso. Ela quer medicina, né?
Pai: Medicina.
Mulher: Eu tenho Fernandópolis.
Pai: Fernandópolis?
Mulher: Interessa?
Pai: Interessa.
Mulher: A gente pode colocar ela ou em Fernandópolis ou em Taubaté.
A vendedora faz propaganda.
Mulher: É uma coisa impressionante. Não tem como não entrar. Vai fazer a
prova tranquilamente. Vai dar pra passar o gabarito completo e não tem
risco para o aluno.
Agora é que vem a conta.
Pai: E valor?
Mulher: Então, o valor está 60 mil.
Fechado o acordo, os candidatos recebiam treinamento. Mas não era para as matérias que caem no vestibular. Era para a fraude.
Homem: Eu vou dar para o menino um ponto de escuta. Ele é maior um
pouco que a cabeça de um cotonete, ele é de silicone, ele é
transparente. Vai ensinar tudo como se usa, como não se usa.
A polícia apreendeu com o grupo pontos eletrônicos. Quem usava tinha
que esconder todos os fios e o receptor de sinal. Colocar tudo embaixo
da blusa, da camisa, para nada aparecer. Aí o candidato colocava o ponto
eletrônico, ficava bem escondido também, para receber todas as
instruções.
Quando a fiscalização apertava, o ponto não era usado. As respostas
chegavam por mensagens de celular, lidas no banheiro em aparelhos
escondidos. As informações corretas eram encaminhadas por estudantes de
medicina que faziam parte da quadrilha. Eles receberam um apelido no
grupo: pilotos. Cabia a eles resolver as provas.
Mulher: São 10 gênios fazendo as provas lá dentro. Geralmente, eles gabaritam tudo.
“São pessoas às vezes com o QI acima da média. Especializadas em
determinadas matérias e fazem a prova muito rapidamente e transmitem os
gabaritos”, explica o delegado da Polícia Federal Alexandre Braga.
É o que mostra outro trecho, gravado após uma prova da Uniceuma, no Maranhão, em novembro de 2011.
Estudante: Fala.
Homem: Anote bem aí. A partir da 16.
Estudante: Manda.
Homem: 16, letra B. Bola.
Estudante: Bola.
Homem: 19, C.
Na quadrilha, cada um tinha uma tarefa. Alguns negociavam com os pais e
os candidatos. Eram chamados de corretores. E outros tinham a missão de
treinar os alunos. Os treinadores explicavam o passo a passo do golpe.
Ensinavam os estudantes a usar o ponto eletrônico e os códigos do
celular. Essa conversa foi gravada antes do vestibular da Uniara, em
Araraquara, no interior de São Paulo, em 2011.
Mulher: Tá pronta?
Estudante: Tô. Quer fazer o teste?
Mulher: Estamos fazendo agora. Tá montada já?
Estudante: Tô montada.
Mulher: Então, você troca a bateria do pontinho. Se não chegar pelo ponto, vai chegar pela mensagem.
Em um vídeo, um dos treinadores sai de um hotel em São Paulo depois de dar as instruções.
No dia da prova, cada piloto resolvia as questões de apenas uma
matéria, para garantir o maior número de acertos possível. Eles saíam
rapidamente da sala. Em seguida passavam os gabaritos por telefone para
uma central em Goiânia.
Imagens mostram três pilotos reunidos depois de uma prova na Faculdade Anhembi Morumbi, em São Paulo, em dezembro de 2011.
As respostas eram mandadas para uma quarta categoria de fraudadores: os
assistentes. E eram eles que repassavam tudo para os vestibulandos
envolvidos.
Para a polícia, o coordenador do grupo é Luciano Cançado, médico,
clínico geral, de 39 anos. Luciano tinha alugado uma casa em um bairro
de classe média de Goiânia, onde morava e também se reunia com os
integrantes da quadrilha, segundo a polícia. Eles definiam os detalhes
do esquema de fraude. Procuramos o doutor Luciano em dois endereços que
aparecem nos relatórios da polícia. Ninguém nos atendeu.
Luciano Cançado trabalha como médico no Hospital Municipal de Jaraguá, cidade que fica a mais de 100 quilômetros de Goiânia.
Giuliana Girardi, repórter do Fantástico: Doutor Luciano Cançado está dando plantão hoje aqui? Ele já foi embora?
Funcionário: Não sei se ele está descansando.
Em seguida, a direção do hospital confirmou que ele já tinha ido embora. Ligamos para Luciano.
Giuliana: Segundo a Polícia Federal de Araraquara, você era o chefe. Você nega isso?
Luciano: Eu nego, Giuliana, eu nego. Eu vou mandar o meu advogado te ligar.
De acordo com o diretor do hospital, no dia seguinte à conversa, Luciano Cançado pediu demissão.
O advogado dele, Sérgio Miranda de O. Rodrigues, falou ao Fantástico.
“A defesa vai aguardar a conclusão do inquérito para se apontar quais
são os fatos especificamente apontados ao meu cliente para que então
possa se posicionar. Não há participação, não há comprovação de venda do
meu cliente em vagas de medicina”, disse ele.
A polícia diz que tem provas suficientes. Extratos bancários com
depósitos na conta de Luciano e confissões de integrantes da quadrilha.
“Nós tínhamos o mentor, a pessoa que desenhou, arquitetou esse esquema,
sediada em Goiânia. Um médico em Goiânia”, diz o delegado.
Além de Luciano, a polícia prendeu os corretores, os assistentes, os pilotos e os treinadores. Ao todo, 15 envolvidos.
Eles estão sendo investigados desde 2011. O Dr. Luciano já foi detido
duas vezes. No fim do ano passado ele foi preso em outra operação de
venda de vaga em vestibular.
Luciano e o seu grupo estão em liberdade. Eles já foram indiciados e devem responder por três crimes.
“Pelo estelionato, pela divulgação de segredo, de sigilo de concursos
públicos ou vestibulares e a formação de quadrilha”, detalha o delegado
Alexandre Braga.
Em Goiânia, procuramos quatro indiciados por pertencer à quadrilha: o
casal Marcos José Nunes de Souza e Ana Cândida Lima Souza, Filipe
Marquez Belo e Melina de Souza Medeiros. Fomos aos endereços que constam
no relatório da polícia. Não encontramos ninguém. Por telefone, eles
não quiseram falar.
O Fantástico entrou em contato também com outros oito acusados: Jovina
Cecília da Silva Gonçalves, Annie Jackieline Montenegro de Souza e
Silva, Lara Cristina de Souza Cançado - irmã de Luciano -, João Paulo
Rosilho, Carlos Eugênio Batista Meireles, Alisson Patrício Roque,
Letícia Aguiar Milhomens e Leonardo Borges da Silva. Mas eles não
quiseram se manifestar.
Nossas equipes não encontraram outros dois envolvidos, Clarianne Silva Leite e Ewerton Alves Alagia.
Segundo a Polícia Federal, não há evidências de que as faculdades
fossem coniventes com o esquema. Mas pode ter havido falhas na
fiscalização.
“O principal elemento que levava as quadrilhas a intervir contra os
certames em universidades particulares era a precariedade do sistema de
segurança deles”, explica Alexandre Braga.
Em nota, as universidades de Rio Verde, Estácio de Sá, Anhembi-Morumbi e
Uninove dizem que usam "detectores de metal" nas provas.
As universidade de Franca e Gama Filho afirmam que, se constatada a fraude, expulsarão os alunos envolvidos.
O centro universitário Uninovafapi e a universidade Ceuma informam que
recolhem todos os aparelhos eletrônicos durantes os exames.
A São Camilo afirma que "toma todas as precauções para evitar fraudes nos processos seletivos".
A Uniara informa que "revisa constantemente os procedimentos de sigilo e combate às fraudes".
O grupo Anhanguera Educacional, ao qual a Uniderp pertence, diz que "mantém forte esquema de fiscalização".
A empresa Access, que faz o vestibular da Faculdade Souza Marques,
informa que anulou a prova de 42 alunos identificados com fraudes no
vestibular de medicina em 2011.
A polícia está fazendo um levantamento agora dos alunos que estão
cursando medicina ou já se formaram, mas que foram aprovados porque
compraram as vagas. Eles também vão responder criminalmente.
“Que direito tem um cidadão de comprar uma vaga quando dois milhões
estão de forma democrática, republicana, se preparando, estudando,
disputando pra poder entrar?”, pergunta o Ministro da Educação, Aloizio
Mercadante.
Segundo o Ministro da Educação, os alunos envolvidos sofrerão também
punições acadêmicas: “Eles vão ser todos identificados, vão ser expulsos
da faculdade, os que eventualmente ainda estejam, e se forem formados
terão seus diplomas cassados. Porque toda a vida acadêmica deles é uma
fraude”.
Conversas do grupo mostram que muita gente pode ter sido aprovada. Os fraudadores debochavam de quem era reprovado.
Homem: Murilo. Desclassificado porque não conseguiu tirar nem 3 na redação.
Homem 2: Que horror.
Homem: Ezequiel. Desclassificado porque não tirou nem 2 na redação.
Nem sempre o esquema fraudulento dava certo. Um candidato chegou a ser
detido pela polícia, que encontrou o ponto eletrônico durante uma prova
da Uniara, em Araraquara, em São Paulo, em outubro de 2011. É a mãe dele
que conta a história para a mulher com quem negociou a vaga.
Mãe de estudante: Você não sabe, Jacke. Queriam levar a gente no
camburão. Esperaram ele terminar a prova. Veio todo mundo da reitoria.
Pegou ele. Levaram numa sala. Olha, esse menino foi de peito, viu,
Jacke?
Mulher: Ô.
Mãe de estudante: Ele não aguentava aquele negócio no ouvido. Ele enfiou até o fundo o negócio pra ninguém ver.
Ela relata como ajudou o filho a se livrar dos equipamentos da fraude.
Mãe de estudante: O reitor falou assim: "Não, não. Você vai pegar seu
carro". Nisso, fiz uma limpa no carro. Piquei celular, piquei papel.
Tudo que tinha nome, sabe? Aí, ele: "Ai, mãe, tô com dor de barriga”.
Nisso, ele arrancou o colar. Esparadrapo, tudo. Jogou na privada e deu o
colar pra mim.
Apesar da confusão, no mesmo telefonema, as duas combinam o esquema para o candidato em mais uma prova.
Mulher: Com certeza, ele vai entrar em Mato Grosso. Não tem vistoria, não tem nada. Ah, outra coisa. A redação tem peso zero.
Para o Conselho Federal de Medicina, os estudantes e médicos envolvidos nas fraudes devem ser punidos.
“É um caso prioritariamente de polícia. É importante para nós médicos
como ele entrou. Porque é o caráter dele que está em jogo. É a questão
ética do médico que comprou uma vaga”, afirma Desiré Callegari,
secretário do Conselho Federal de Medicina.
“Ele não está disputando uma vaga, ele está comprando uma vaga, tirando
o sonho de muita gente mais capaz que ele”, acusa um estudante.